Artigo de Luciano Rolim, procurador da República
Creio já ter demonstrado, em ocasião anterior (1) , que a Escola do Direito Livre exerceu forte influência sobre a interpretação que culminou na Resolução 199 do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual todos os juízes do Brasil fazem jus a auxílio-moradia no valor de R$ 4.377,73.
Importa lembrar que tal corrente teórica, notabilizada pelo individualismo e voluntarismo judiciais, depositava uma confiança desmedida no juiz, recomendando-lhe até mesmo o uso da decisão contra legem, isto é, contrária ao texto da norma legal, caso necessário à efetivação da justiça. Dita escola logo se mostrou perigosa e incompatível com o princípio democrático; por isso, encontra-se há muito sepultada em todo o mundo civilizado.
Parece, no entanto, que a nossa Justiça pretende ressuscitá-la; mais do que isso, ela estaria disposta a conferir-lhe um ânimo sem precedentes na história do Direito. Com efeito, a nova versão dessa doutrina – que poderíamos chamar de Escola Irracionalista do Direito – autoriza não só a decisão contra legem, mas também a decisão contra logicam.
O todo é maior que a parte, logo a parte é menor que o todo. Certo? Depende.
Pelo menos para o Conselho de Justiça Federal, nem sempre. Vejamos o caso da gratificação por exercício cumulativo de jurisdição na Justiça Federal, instituída pela Lei n° 13.093/2015 e regulamentada pela Resolução 341 do CJF. Ela corresponde a 1/3 (um terço) do subsídio do magistrado para cada 30 (trinta) dias de acumulação – observado o teto do funcionalismo público – e é devida, como o próprio nome revela, pelo exercício cumulativo de jurisdição. Jurisdição é a atividade pela qual o juiz diz o direito, ou seja, decide os casos que lhe são submetidos. A expressão vem do latim: juris + dictio. Sendo assim, um juiz acumula jurisdição quando responde simultaneamente pelos seus casos e pelos casos vinculados a outro(s) magistrado(s), de uma mesma vara (cada vara é composta por dois juízes) ou de uma vara distinta. Normalmente, isso ocorre em casos de afastamentos (férias, viagens a serviço, etc.) ou vacância.
Uma última noção será necessária para compreender a dissociação lógica do CJF. A acumulação de jurisdição pode ser de duas espécies: acumulação de juízo, que é a atuação simultânea em órgãos judiciais distintos, por exemplo, em duas varas; ou acumulação de acervo processual, que significa a atuação simultânea dentro de um mesmo órgão judicial (ex.: vara). Acervo é a totalidade dos processos vinculados ao juiz. Quando o juiz cobre o afastamento do seu colega de vara, ele faz acumulação de acervo, e não de juízo. Contudo, em ambos os casos tem direito à gratificação. A Lei n° 13.093/2015 não apresentou nenhuma inovação nesse campo; portanto, esperava-se que sua regulamentação pelo CJF não trouxesse nenhuma surpresa, até porque o poder regulamentar deve irrestrita observância à lei. Bem, talvez não para a Escola Irracionalista do Direito.
A novidade acomete a noção de acervo. A lei sob análise, fiel ao sentido comum desse conceito, é clara e unívoca ao defini-lo: “acervo processual: o total de processos distribuídos e vinculados ao magistrado” (art. 2°, II). Frise-se, “o total”.
Por conseguinte, o juiz acumulará acervos quando responder simultaneamente por todos os seus processos e por todos os processos de outro(s) magistrado(s). Pelo art. 9° da Resolução 341 do CJF, entretanto, nas unidades jurisdicionais que receberem mais de 1000 (mil) processos novos por ano, o limite do acervo processual (processos novos + processos antigos) por magistrado será de 1000 (mil) processos. “Suplantado esse limite, o acervo processual da unidade será dividido, havendo nova divisão toda vez que o volume de processos exceder múltiplos de mil”.
Suponha-se que a vara única de um município tenha recebido mais de mil processos no ano e que o acervo de cada um dos seus dois juízes seja de 2.500 processos. Nesse caso, a Resolução 341 considera que cada juiz tem, em relação aos seus próprios processos, 3 acervos. Ou seja, o acervo do juiz, isto é, “o total de processos distribuídos e vinculados ao magistrado” transforma-se, por ficção, em três acervos. Enfim, cada uma das três frações que compõem seu acervo passa a ser, ela própria, um acervo. A parte torna-se igual ao todo.
Qual é o efeito prático disso?
No exemplo citado, os juízes da vara estarão sempre acumulando acervos – os seus próprios “acervos” –, e farão permanentemente jus à gratificação, no limite máximo, até o teto constitucional (correspondente ao subsídio do ministro do STF, atualmente fixado em R$ 33.763,00), isso sem falar no auxílio-moradia. Considerando os dados de movimentação processual da Justiça Federal disponíveis no site do próprio CJF (2) , sabe-se de antemão que todos os juízes federais do país encontram-se nessa situação. Pode-se dizer, então, que, a partir de agora, a remuneração do juiz federal passa a ser igual à do ministro do Supremo. O que deveria ser vantagem eventual – a ser gozada nas férias e demais afastamentos do colega – degenerou-se em aumento salarial.
A Resolução 341 elenca ainda outras situações em que considera incidir a gratificação, embora o magistrado não se encontre respondendo pela totalidade dos processos de outro juiz. Em alguns casos, à semelhança da hipótese prevista no art. 9°, há acumulação pelo simples fato de atuar o magistrado em determinados processos originalmente distribuídos a ele próprio, como, por exemplo, recurso ordinário em habeas corpus ou mandado de segurança (art. 6° parágrafo único).
Por fim, convém apontar mais uma subversão operada pela Resolução 341. Antes, registre-se que, por força do princípio da legalidade administrativa, qualquer direito ou vantagem funcional de um agente público depende de previsão legal. Feito esse esclarecimento, passemos a mais um ponto controverso da regulamentação do CJF.
Lembre-se que a gratificação examinada corresponde a 1/3 do subsídio do magistrado para cada período de 30 dias, sendo paga proporcionalmente por dia de acumulação. A lei diz expressamente que a vantagem está sujeita ao teto salarial do funcionalismo público. Considerando que esse teto é atingido na metade daquele período, a Resolução 341 dispôs que o período máximo mensal de acumulação é de 15 dias. A partir daí, o juiz que está cobrindo o afastamento de um colega tem que ceder lugar para que outro magistrado complete o período restante. Cumpre recordar porém, que, em virtude de ficção levada a efeito pelo CFJ, praticamente todos os magistrados federais estarão permanentemente acumulando acervos. Nesse caso, os dias de acúmulo não-remunerado (porque atingido o teto) serão convertidos, segundo a Resolução 341, em dias de folga, na proporção de três para um, até o limite de 15 dias por ano, vedada sua retribuição em pecúnia.
Trocando em miúdos, os juízes federais conquistaram por mera resolução, além de uma vantagem pecuniária permanente, 15 dias de férias por ano, sem prejuízo dos 60 dias a que já têm direito. De uma proibição da lei, que interdita o pagamento da gratificação além do teto, extraiu-se um direito sem previsão legal.
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(1) “Auxílio-moradia e reinado dos juízes”, “O Estado de S. Paulo“, 23.2.2015.
(2) http://daleth.cjf.jus.br/atlas/Internet/MovimProcessualJFINTERNETTABELAS.htm.